Há pouco mais de dez anos, tempo em que o ICQ bombava e a conexão era em 14.400 bps, uma turma de jovens entusiastas: Eu, o Nando Pereira, e a Keka Marzagão faziamos experiências com o Flash, alias era o que mais faziamos naquela época. Dai surgiu a ideia de criar um site em Flash para deficientes visuais, o projeto “Blindness”.
Era um projeto aberto, dentro do Flash Brasil, e todo mundo poderia participar, a interface era negra e com molduras duplas sensiveis, que se acionadas no sentido de fora para dentro, a gravação da voz de minha irmã falava: – Entrando, caso contrário falava : – Saindo. Na época, o Flash não suportava MP3, nem mesmo video, fizemos uma montagem com o Real Flash, onde o Flash através de artifícios executava um audio no formato Real Audio. Quadrados com gravações em audio davam as noticias. Na época, em 1997, nem se falavam em usabilidade e acessibilidade e la estavamos nos orgulhosos de nossa obra, que no nosso ver extendia os tentáculos da web aos portadores de deficiência visual. Estávamos fascinados e prontos para anunciar ao mundo nosso projeto genial.
Mas antes disto, o Nando Pereira sugeriu fazermos alguns testes de campo, e foi atrás do pessoal da UFRJ do Intervox, que entendiam do assunto, foram eles os desenvolvedores do DOSVOX, programa de leitura de tela, e muitos eram portadores de deficiência visual. A primeira resposta que o Nando recebeu não fora muito animadora, os portadores de deficiência visual não usam o mouse, o mouse é um dispositivo de apontamento, e para apontar é preciso ver, de forma que eles utilizam basicamente o teclado, uma vez que mesmo que o teclado não possua recursos de braile em suas teclas, a posição das mesmas nunca muda, facilitando a memorização.
Tendo em vista o enorme erro que cometemos, a unica saida era senão, abandonar o projeto, que apesar de muito bacana, não tinha funcionalidade prática alguma para o público alvo, os portadores de deficiência visual. O projeto ficou algum tempo disponível no site, como um case de equivoco, e depois simplesmente o tiramos do ar. Tal equivoco nos serviu de lição, eu vivo falando destas mancada em minhas palestras, falei dele até na classica palestra da Dinastia do Flash no Brasil que proferi online em 2006.
Para minha surpresa, recebi um email do meu amigo Caparica, onde o Jornal da Paraíba apresentava uma interface bem parecida com a do defunto projeto Blindness, incrédulo fui conferir e verifiquei que haviam resucitado o monstro, só que agora provido de mais recursos, tais como sintetizador de voz e menu alfabético. Onze anos se passaram, e conseguiram repetir a mancada!
O projeto do Jornal da Paraíba, foi anunciado no próprio jornal como inovador, bom alem de não ser inovador como ideia, também não é inovador como mancada, afinal ja haviamos cometido a mesma besteira em 97. Mas veja o que falam na noticia:
[..]O Jornal da Paraíba lança mais um projeto inovador: a primeira edição digital para deficientes visuais do país. A novidade, que será lançada na quarta-feira (8), a partir das 8h no Garden Hotel, em Campina Grande, vai disponibilizar diariamente o conteúdo completo do jornal através de um recurso multimídia que oferece aos deficientes visuais a oportunidade de ouvir as notícias na íntegra, da mesma forma que são publicadas na versão impressa. Uma iniciativa pioneira que deve facilitar a vida de mais de três milhões de pessoas com limitações visuais no Brasil.[..]
[..]O coordenador de Métodos e Sistemas do JORNAL DA PARAÍBA, Washington Lima, responsável pelo desenvolvimento do projeto, conta que a tecnologia do sistema foi toda elaborada na própria empresa com o objetivo de apresentar à sociedade um produto que permitisse ouvir as notícias a partir de uma tela com leitura eletrônica.
“O setor de desenvolvimento criou uma tela sintetizada que emite sons a partir do movimento do cursor, denominado módulo de leitura eletrônica. Através deste recurso, o mouse passa a ser fundamental para quem quer se atualizar via internet, mas não tem visão ou não teve oportunidade de aprender a ler”, explica Washington Lima sobre o mais novo projeto de responsabilidade social do veículo.[..]
Acho que erraram nos dois alvos, o portador de deficiência visual não utiliza mouse e o analfabeto não saberá ler os botões.
O grande MAQ, Marco Antônio de Queiroz, o chamo de grande, pois é uma pessoa espetacular, um exemplo de determinação e persistência para contornar os obstáculos que a vida colocou no seu caminho, é um consultor em acessibilidade, e portador de deficiência visual. Quando inicia suas aulas de acessibilidade, a primeira coisa que ele manda fazer é tirar os monitores e mouses dos laboratórios.
Meu amigo Caparica, alem do link para a “novidade” do Jornal da Paraiba, ainda me mandou um link para um tópico no Forum Acesso Digital, e eis que encontro uma mensagem do MAQ a cerca do projeto:
[..]Nenhum cego tem a experiência de entrar no Windows ou Linux sem ativar seu leitor de telas, pois estaria inteiramente perdido sem ele. Assim, o fato de contarem que nós entremos no jornal sem o nosso software já é algo inteiramente fora do padrão. Se um de nós estivermos em uma lan house, sem nosso leitor de tela em um pen drive, como chegaremos até o jornal, mesmo que neste já haja sintetização de voz? Somos dependentes da navegação via teclado em conjunto com nosso leitor de tela. Sem esse, ficaríamos dependentes de quem enxerga para chegar até o jornal. Lá no jornal, como os procedimentos para manipulação da sintetização, fundamental para nós, é toda diferente do que estamos acostumados, ou seja, por via do mouse, ficamos dependentes de alguém que enxergue para ir nos dizendo como fazer cada jogada, leitura, etc. Quem sabe os amigos não incluém em sincronia com o mouse, a navegação via teclado e, assim, o jogo e a leitura poderiam ter um acesso universal?
Nenhum cego tem o costume de utilizar o mouse, nossa navegação é via teclado. Alguns de nós, nem mesmo tem mouse. Isso de não ter mouse e monitor é um radicalismo de alguns, alguns que moram sozinhos e tem como amigos, em sua maioria, pessoas também cegas. Mas, tudo bem, vamos que alguns se impolguem tanto que entrem na página do jornal, desliguem seus leitores de tela e comecem a manipular os comandos e sintetização do jornal. A curva de aprendizagem será enorme, pois toda ela é baseada na experiência de um usuário que enxerga, pois arrastar algo com o mouse clicando ao mesmo tempo é coisa que eu, por exemplo, desde 1995 na internet, nunca fiz com um mouse! No entanto, é coisa corriqueira para quem enxerga. Não seria mais interessante aproveitarem a nossa experiência de teclado e criar um link que cada vez que déssemos enter o volume fosse aumentando?[..]
Pronto, e agora Jornal da Paraíba? Podia ter ficado sem este “mico preto” e ter economizado uma grana do lançamento do inovador recursos, para tal bastaria ter feito o que qualquer profissional de marketing, faria, estudar melhor o público alvo.