Não sou fã de reality shows, tenho muitas críticas a estes tipos de entretenimento, mas em casa minha família acompanha todos eles. É BBB no almoço, na janta e depois também. As conversas sobre o reality são constantes por aqui. Não tenho como ficar de fora, muitos temas sensíveis surgem nestas conversas, e esta edição em especial está com um contingente grande de participantes negros. Segundo o IBGE, 54% da população brasileira é negra, e esta edição do reality tentou manter esta proporção.
A questão não é meramente matemática, mas sim o que está acontecendo na casa.
Não conheço o processo de seleção, mas acredito que devam existir avaliações psicológicas e psicograficas que permitam à direção do programa conhecer profundamente a personalidade dos participantes. Uma vez conhecidos, montar as possíveis dinâmicas esperadas no programa é uma questão simples para profissionais especializados em psicologia e sociologia.
O jovem e simpático Lucas foi o primeiro negro a ser ofertado ao achincalhe dos participantes, em especial dos participantes negros, que formaram o que esta sendo conhecido por “eixo do mal”. Lucas foi “cancelado” a partir dos ataques da psicologa e ativista Lumena, e sofreu assédio moral da cantora egocêntrica Karol Konca. O ataque ao Lucas se tornou ainda mais intenso a partir do momento em que ele e o Gilberto se beijaram. A pressão insuportável feita pelo eixo do mal, em especial pela própria Lumena, se deu em torno do questionamento da orientação sexual do rapaz, que não aguentou a pressão e pediu para sair do programa.
O episódio provocou uma verdadeira ebulição emocional no público que acompanha o reality. Se isto fosse um filme, é nesta hora a câmera iria cortar para mostrar o regozijo do vilão. Por falar em vilão, lembrei do fato, onde um vazamento mostra o audio do “Boninho” falando com o Projota sobre o Lucas, e ele diz: “O Lucas é um bom menino, mas ele omitiu que tinha problemas com a bebida. Quando ele bebe se transforma num monstro”.
Vamos parar um pouco, e olhar para os detalhes…
A refundação dos estereótipos
É impressionante a capacidade de refundar e reforçar estereótipos justamente quando a intenção é desconstrui-los. Pode ter sido a intenção da produção do programa criar uma oportunidade para trazer estas questões para o debate público, mas o que tem ocorrido tem sido o oposto.
Existem no âmago da sociedade brasileira inúmeros estereótipos que são repetidos e reforçados diariamente num processo recursivo que os fixa em nosso inconsciente, a ponto de acessa-los de forma automática.
Leonard Mlodinow no livro Subliminar diz que 95% da nossa capacidade cognitiva funciona de forma automática, e é para este campo da automação que estes preconceitos sedimentados vão.
Um exemplo interessante deste processo recursivo de consolidação de estereótipos em precoceitos pode ser tirado do livro Weapons o math destruction da Cathy O’Neil. Em determinado momento ela cita o PredPol, um sistema de inteligência artificial capaz de prever onde estão ocorrendo mais crimes com base no registro de delitos. O sistema foi usado pela policia de Los Angeles, que acabou delimitando as regiões de população mais pobre e negra como as regiões violentas. Isto ocorreu porque o próprio preconceito dos policiais foi assimilado pelo sistema, ao relatarem qualquer delito destas regiões, mesmo aqueles irrelevantes como pequenos furtos, e ao mesmo tempo relevarem delitos até mais graves em outras regiões, eles enviesaram os dados do PredPol.
Existem outras questões subjetivas que nos fazem reforçar nossos preconceitos, como diz o estudo da “Espiral do Silêncio” conduzido pela pesquisadora Elisabeth Noelle-Neumann em 1974. Segundo o estudo as pessoas optam por omitir-se, aceitando a opinião vigente do grupo, com receio de serem isoladas socialmente. Ou seja, aceitam os estereótipos e preconceitos construídos por seu grupo social, como medo de serem excluídas.
Ainda pelos submundos da mente humana, nosso processo cognitivo é repleto de automações, que nos fazem processar informações e tomar decisões de forma mais rápida. Estes processos são chamados de “heurísticas”, e já foram identificadas mais de 100 tipos diferentes, e estas heurísticas acabam reforçando nossas crenças, sedimentando ainda mais nossos preconceitos. Você já deve ter ouvido fala do “Viés de Confirmação”, que é uma heurística, que diz que tendemos a aceitar como verdade aquilo que dialoga com nossas crenças, e refutar tudo aquilo que a contraria. Outra heurística que acho pertinente aqui, é o viés da disponibilidade, que diz que tendemos a tomar decisões e conclusões com base nas informações imediatamente disponíveis em nossos esquemas mentais. Se estamos o tempo todo recebendo reforço de nossos preconceitos, é fácil concluir quais serão estas informações.
Percebe-se ai, o quanto estes estereótipos reforçam preconceitos, e quão profundo estes preconceitos permeiam o tecido social e a mente do indivíduo, dificultando muito sua desconstrução.
Ain! Que gente chata!
O primeiro passo para avançar contra estes estereótipos é enfrenta-los e desconstrui-los. Na prática toda luta de vitimas destes estereótipos se baseia nesta tarefa. E na verdade, todos somos vitimas de estereótipos e preconceitos em algum nível, nos colocando na posição de indignado.
Indignai-vos! Uma breve obra onde Stephane Hessel, explicita a necessidade de nos mantermos indignado. Para ele, muito da indignação é atrelada a eventos histórico, tornando-a pontual, porém defende que a pior das atitudes do ser humano é a indiferença, e a capacidade de indignar-se é completa quando integrada a capacidade de construir um altruísmo através da empatia. Stephane defende também a não violência e a insurreição pacífica como caminhos a serem trilhados nessa luta chamada vida.
Na prática, o processo de reação e desconstrução é pleno em emoções, e cria uma atmosfera pesada, colocando todos os demais no lugar comum de algoz. Desta perspectiva surgem as expressões como luta contra o patriarcado pelas feministas, ou luta contra as regras da branquitude no tema em questão. Isto em um micro ambiente social, como a casa do BBB acaba criando um ”clima pesado”, levando os participantes a pisarem em ovos, cuidando para serem politicamente corretos.
Para quem está do lado de fora, a leitura é “Ain! Que gente chata!”, não pode nada!
E é exatamente esta narrativa que esta sendo construída, a leitura fora do contexto de construção de políticas públicas é exatamente este. Não que este comportamento seja errado, ele é desejado, em políticas públicas o papel dos radicais é importante para podermos deslocar a janela de consenso para uma posição mais favorável.
Mas dentro de um reality é a pior coisa a ser feita, parafraseando Paulo Freire, o sonho do oprimido é tornar-se opressor, mas só o amor constrói. Se tivesse um participante experiente em políticas públicas, como o Diplomata Rômulo Neves que participou em outra edição, ele certamente faria o papel de mediador, transformando os embates em produtivos debates.
A experiência em politicas públicas nos faz perceber a distinção entre os indivíduos e suas representações no embate, nos permitindo separar as pessoas de suas personas. Outro aspecto é compreender que o dialogo é a raiz do consenso, e que o consenso é a única forma de evoluir. Todo resto é desperdício de energia.
Talvez a primeira coisa que os ativistas deveriam buscar compreender são todos os aspectos que forjam estes estereótipos e preconceitos, e não apenas os aspectos cognitivos como descrevi acima, mas também históricos, culturais, sociais, regionais, econômicos e políticos.
Mapeando os atores de suas interlocuções poderiam identificar formas de expor os efeitos de uma cultura opressora dentro de um contexto que o próprio opressor, ou representante do grupo opressor, possa perceber, ativando sua empatia.
Por exemplo, certa vez li um relato em uma rede social de uma menina que toda vez que pegava um taxi ou um Uber, ao entrar fingia estar falando com alguém, passando os dados do carro e do motorista, e avisando que chegaria em tantos minutos. O relato dela passava por outras práticas de segurança comuns em festas e até mesmo para andar sozinha na rua. Aquilo me assustou, eu sou homem hetero, faço parte do estereótipo do patriarcado. Mas eu senti mesmo, e me impressionei quando vi a quantidade de comentários e interações de outras meninas relatando suas práticas ou confirmando fazer o mesmo, aquilo me encheu de vergonha de pertencer a um estereótipo opressor, e mudou completamente a minha compreensão do que é ser mulher em uma sociedade machista.
Este é o gancho, este é o caminho pelo amor, como diz Paulo Freire, e não violento como apregoa Stephane Hessel.
Em resposta, quando Lumena falou que era desconstruída, e que não queria cozinhar porque cozinhar esta associado ao estereótipo do negro, a resposta dos outros participantes deveria ser a negação do estereótipo, melhor que desconstruir um estereótipo, é dissolve-lo em conjunto com todos, independente de quem for. E esta dissolução é trabalho de formiga, e deve começar em casa, em primeiro lugar deixando de usar a palavra “negro” como adjetivo…