Os perigos da recentralização do mundo de pontas

A Internet foi concebida para ser operada de forma descentralizada, justamente para resistir à um ataque nuclear, paranóia muito comum durante o período da guerra fria. As maiores apropriações da rede foram feitas justamente dentro desta premissa, tanto as apropriações tecnológicas como o P2P como sociais como o crowdsourcing e o poder da auto organização.  O P2P é um protocolo que permite a troca de pacotes de pessoa à pessoa, ou melhor de muitas pessoas para muitas pessoas, com isto é possivel transmitir uma considerável massa de dados, sem sobrecarregar servidores ou braços da rede. O poder do crowdsourcing, da inteligência coletiva e da auto organização continuam um mistério para muitos, mas sabemos que sua base conceitual é justamente a descentralização e a ausência de uma liderança e da ultrapassada estrutura hierárquica.

Existem três manifestos que na minha opinião dizem muito a respeito da cibercultura, a nossa cultura, e das características fundamentais da rede. São eles o Manifesto Cluetrain, o Manifesto da Cultura Livre e o Mundo de Pontas.

O mundo de pontas trata justamente desta questão da descentralização que é a alma da cibercultura, a alma da internet. Ele mistura um pouco da estrutura da rede com as pessoas, é um passeio pelas camadas da conectividade como uma radiografia do complexo ecossistema social que se forma no século XXI, e tudo de uma forma bem simples. O manifesto destaca a clássica frase de John Gilmore: “A Internet interpreta a censura como um defeito e roteia para contorná-la”, numa constatação de que é impossível censurar a Internet. Outro trecho interessante é na declaração a seguir:

Não é o fim do mundo, é o mundo de pontas

Quando Craig Burton descreve a arquitetura burra da Internet como uma esfera oca composta inteiramente de pontas, ele está usando uma imagem que mostra o que é mais extraordinário sobre a arquitetura da Internet: retire o valor do centro e você viabilizará um crescimento louco de valor nas pontas interconectadas. Porque, claro, se todas as pontas estão conectadas, cada uma com cada uma e cada uma a todas, as pontas deixam de ser pontos finais.

E o que nós, pontas, fazemos? Qualquer coisa que pode ser feita por qualquer um que quer mover bits.

Notou nosso orgulho em dizer “qualquer coisa” e “qualquer um”? Isso decorre diretamente da arquitetura simples e burra da Internet.

Porque a Internet é um acordo, não pertence a nenhuma pessoa ou grupo. Não às empresas estabelecidas que operam a espinha dorsal (“backbone”). Não aos provedores que nos fornecem conexões. Não às empresas de “hosting” que nos alugam servidores. Não às associações de indústrias que acreditam que sua sobrevivência é ameaçada pelo que nós outros fazemos na Internet. Não a qualquer governo, não interessa quão sinceramente acredita que está tentando manter seus cidadãos seguros e complacentes.

Conectar à Internet é concordar em crescer o valor na periferia. E aí algo realmente interessante acontece. Todos estamos igualmente conectados. A distância não importa. Os obstáculos desaparecem e pela primeira vez a necessidade humana de conectar pode ser realizada sem barreiras artificiais.

A Internet nos dá os meios de nos tornarmos um mundo de pontas pela primeira vez.

Nos sabemos usar este ecossistema à nosso favor,  mas o establishment (Tripé do atraso) também sabe, ou melhor pode pagar para quem sabe trabalhar para ele. Desde a campanha eleitoral, que venho afirmando categoricamente que a Internet esta sofrendo um cerco técnico, altamente qualificado. São verdadeiros profissionais que estão usando e analisando a estrutura da rede e reduzindo comportamentos à modelos matemáticos, como um derradeiro esforço para recuperar o poder do establishment, que vem se diluindo rapidamente, e se não ficarmos atentos eles irão conseguir!

Os movimentos dos cercos técnicos, que é como chamo o movimento do establishment acima, atuam em diversas esferas, seja na trollagem, ou seja na manipulação das percepções e também agora parecem estar atacando como verdadeiros lobos em pele de cordeiro no sentido de recentralizar a web. O bacana disto tudo é que as duas teses dos perigos da recentralização vieram de meu filho, um típico representante da geração digital, sinal de que esta geração esta atenta. A primeira tese é o perigo das nuvens e agora os práticos serviços de download remoto de torrents.

Nuvens podem causar temporais

A midiaticamente propalada computação nas nuvens vem aos poucos mostrando a sua verdadeira face, que é a a de recentralizar o mundo de pontas, eu nunca havia percebido isto até que um dia meu filho me apresentou o Onlive, um site de jogos nas nuvens que a partir do pagamento de uma mensalidade permite que você jogue até mesmo a partir de um set top box para a TV. A Som Livre também lançou um serviço nas nuvens, o Escute, musicas com DRM que estão disponíveis por uma pequena mensalidade, uma conveniência que pode aprisionar, basta que tenhamos dispositivos moveis com custos de conexão mais baixos e velocidades mais altas, o próximo passo poderia ser a redução da “desnecessária” memória dos mesmos em detrimento da “performance”, isto sem contar da “conveniente” conectividade permanente.

Bom, mas onde esta o problema disto? Imagine que a moda pegue, nossos computadores voltariam a ser terminais quase burros, conectados à inteligente e centralizada nuvem para a qual pagariamos mensalidades para termos acesso à nossas produções, preferencialmente em formato proprietário. Ou seja, a inteligência da rede migraria para o centro, tornando-se vulnerável e mais facilmente controlável. José de Alcántara disponibilizou o e-book “La neutralidad de la Red” que dada a importância o disponibilizou sob a forma de domínio público, abrindo mão de quaisquer direitos. Neste e-book Alcántara faz exatamente esta abordagem, observem as topologias de rede abaixo:

No livro ele descreve que na rede centralizada, toda comunicação passa necessáriamente por um ponto central, de modo que o desaparecimento deste ponto irá desarticular totalmente a rede. A rede descentralizada é compostas de várias redes centralizadas interconectadas, entretanto a ruptura dos nós centrais das redes, ou a desconexão destas irá facilmente desarticular toda a rede, por fim a rede distribuída é radicalmente diferente das demais, não existe nó central, e a supressão de um ou mais nós não afetara a comunicação de forma alguma, esta é a Internet que temos hoje.

Jose também fala dos riscos da recentralização, apresentando-o como os serviços, não só das nuvens, como podemos entender as redes sociais privadas, APIs e protocolos fechados e proprietários, veja este trecho do livro:

La recentralización de la infraestructura

Aparte de los proveedores de acceso a Internet, cuyo objetivo principal es el de hacer valer su posición privilegiada -actualmente son la única puerta de acceso real a Internet- para obtener un beneficio desproporcionado, existe otro grupo de empresas que pretenden desequilibrar la balanza de la neutralidad de la Red a su favor: se trata de los grandes prestadores de servicios por Internet.

En esencia, estos prestadores de servicio actúan ofreciendo sus computadoras al público general, de forma que éste utiliza la infraestrectura como si de un servicio centralizado más se tratase, en lo que se conoce por el nombre de Infraestructura como servicio (Iaas).2.43.

Estos servicios de infraestructura centralizados funcionan de muy diferente manera e incluyen desde los servicios de computación en la nube,2.44 en los que el prestador de servicio alquila computadoras y potencia de cálculo para el propósito que el cliente desee, hasta los servicios de software centralizado en los que el prestador de servicio no sólo centraliza la infraestructura sino también el software. En general, tanto uno como otro disminuyen el grado de distribución de la Red.

Acredito que tenha ficado mais claro o grande risco da recentralização da rede, recomendo fortemente a leitura do e-book de Alcántara.

Centralizadores de torrents

O genial protocolo P2P, que é a base fundamental para a manutenção da liberdade na rede na construção de mecanismos anti-censura como sistematizado neste texto na EFF. Como citado no inicio deste texto, é um protocolo que permite a transferência otimizada de uma grande massa de dados sem sobrecarregar servidores e braços da rede. Com base neste protocolo surgiu o BitTorrent um protocolo de distribuição de arquivos. O BitTorrent funciona basicamente assim: Para cada arquivo ele constroi um mapeamento e vai capturando partes de arquivos de diversos usuários, os seeders. Todo usuário ao mesmo tempo que baixa um arquivo por BitTorrent esta ao mesmo tempo enviando partes dele para outros, quanto mais “seeders” mais rapidamente os arquivos são transferidos.

Surge então o LeechMonster, um “prático” serviço que baixa os torrents para você “anonimamente” e permite que você posteriormente os baixe via http ou ftp em alta velocidade. Um prático serviço a principio, mas veja que ele irá tirar milhares de “seeders” e será apenas um “seeder”, e aos poucos justamente por falta de “seeders” o serviço se tornará mais indispensável, e na mesma proporção irá matar o BitTorrent que se tornará uma solução muito lenta, recentralizando a rede mais uma vez.

Portanto, fique atento, não aceite “almoço gratis” com facilidade, pense antes se ele vai ser uma alta conta a pagar no futuro…

Foto: a imagem do globo com as peças foi produzida por Sanja Gjenero

Postado originalmente no Trezentos.

ACTA e o tripé do atraso

Os neoludistas estão lutando pela manutenção dos valores “analógicos”, a industria do copyright briga para ampliar seu poder e a midia tenta a todo custo prorrogar a sua morte já anunciada. Este três grupos atacam compulsivamente seu maior inimigo, que é ao mesmo tempo a maior invenção de todos os tempos: a Internet. Tudo por causa de uma ambição miope que se resume em manter-se na “zona de conforto”.

Os neoludistas não significam uma organização estruturada para manter os “velhos valores” em detrimento da tecnologia, é na verdade um conjunto não organizado de pessoas (políticos, juristas, empresários e até mesmo cidadãos comuns)  que possuem um alinhamento ideológico neoludista, e que exercem sua influência e são influenciados com base na ignorância tecnológica intencional ou não. A indústria do copyright vem compulsivamente atirando no próprio pé desde o momento da popularização da Internet, transformando seus consumidores em vitimas do próprio consumo.  Na tentativa de manter seu super ultra lucrativo modelo de negócios, a indústria do copyright procura posicionar-se acima de qualquer mortal estendendo seus tentáculos além dos direitos fundamentais e civis. Enquanto morre de dentro para fora, a midia vem tentando sobreviver num momento em que o jornalismo atinge sua melhor fase, é a implosão anunciada. Esta para se manter viva alinha-se com a indústria do copyright , fornecendo munição para os neoludistas atacarem os conectados que já são maioria no Brasil (já que em 2009 eram 45%), isto num ciclo interminável a ponto de não se conseguir saber mais onde tudo começou ou até mesmo quem influencia quem.

Os neoludistas, a indústria do copyright e a mídia formam o tripé do atraso, uma estrutura poderosa que sustenta o atraso que assola principalmente o terceiro mundo.

Pela ótica dos conectados é como se o tripé do atraso fosse o nobre decadente, que ainda se sente provido de poder e credibilidade com base em velhos dogmas e valores que aos poucos vão sendo suplantados, o resultado disto é uma exposição caricata de um ícone do passado. O tripé do atraso recusa-se a adaptar-se aos novos valores, acredita ainda ter poder para muda-los ou ignorá-los, propala um discurso patético que começa a fazer sentido somente para mentes conservadoras do próprio tripé, encerrando o discurso dentro do espaço do emissor retro alimentando-o. O tripé do atraso ainda enxerga as estruturas verticalmente, acredita que eles é quem produzem cultura, e não o povo. Não fazem a menor idéia do que seja a inteligência coletiva, que vem constantemente desmascarando as tentativas manipulatórias da mídia. Ainda pensam que existe alguém por trás disto, e não uma multidão como de fato é. O tripé do atraso ainda enxerga as velhas formas de comunicação, um emissor e muitos receptores, ignoram a comunicação em rede, obviamente porque não enxergam estruturas verticais e ainda buscam lideranças em tudo que combatem.

Na prática não podemos subestimar o tripé do atraso, eles são poderosos e não estão tão por fora da cultura digital como imaginamos, a Convenção de Budapeste, o AI5 digital e o ACTA [1],[2],[3] e [4] são indícios de que eles estão sendo assessorados por quem sabe. Em linhas gerais querem criminalizar a Internet como conhecemos, transformando-nos em criminosos do dia para a noite. Legislações deste tipo darão um tremendo aborrecimento e trarão um terrível atraso e um nível insuportável de controle.

O Ciberativismo da sociedade conectada no Brasil conseguiu paralisar a tramitação do AI5 digital, o Itamarati já se posicionou que não assina convenções de que não participa de sua elaboração, apesar disto, a Argentina assinou a convenção de Budapeste, mas ainda falta a decisão tramitar no congresso de lá, torceremos para que os ciberativistas Argentinos saibam se mobilizar para bloquear isto.

O caráter secreto do ACTA, assim como foi com o AI5 digital no inicio, é um dos fatores mais preocupantes. Pelo que foi divulgado e vazado anteriormente, o ACTA pretende justamente mudar os valores citados acima para alegria dos neoludistas, fazendo voltar tudo como era antes, a figura do intermediário, o controle da produção e a volta da economia da escassez, uma vez que as maliciosas cláusulas do ACTA irão literalmente acabar com o remix, com a criação, e principalmente com a liberdade na rede, senão com a própria rede.

Somos uma das nações mais promissoras em termos de cultura digital, temos um povo criativo, e livres seremos imbativeis, imagina unidos com nossos irmãos latinos, alias já deveríamos ter feito esta união há muito tempo. Temos três trunfos em andamento que temos de participar, pois o Marco Civil servirá de barreira contra o ACTA (temos de corrigir o que precisa ser corrigido), juntamente com a Reforma da Lei de Direito Autoral, e por fim o Plano nacional de Banda larga irá proporcionar uma intensa aceleração da inclusão e alfabetização digital, facilitando ainda mais nossa resistência.

Formar uma rede popular de resistência ao ACTA esta sendo um grande desafio, esta rede terá de ser muito grande e terá de atravessar fronteiras, acredito que a partir deste momento esta sendo formada a rede mundial de ciberativismo contra o ACTA, vamos mostrar mais uma vez que a globalização social foi muito mais efetiva do que a globalização econômica, e que precisamos cada vez menos de intermediários.  Você pode não estar percebendo ainda, mas estamos caminhando pelo tabuleiro, onde a jogada final irá colocar em xeque o modelo econômico atual, os sinais já estão por ai, o momento agora é de leitura e debate, vamos entender o que é o ACTA, e agir com Sun Tzu fala em seu livro a arte da guerra: Se você conhecer a si mesmo e a seu inimigo nunca perderá a guerra. A corrida já começou, é a corrida do conhecimento, esta esperando o que?

Este post é uma resposta tardia à convocação para a blogagem coletiva contra o ACTA.

Créditos das fotos

A espetacularização do combate à pirataria

Confesso que estava torcendo para que o processo movido contra o The Pirate Bay fosse um tiro na água, a industria de intermediação cultural precisava encontrar um freio, mas infelizmente a justiça Sueca considerou os donos do site culpados. Na verdade, conforme Ronaldo Lemos, a decisão aumenta o escopo dos direitos autorais e assim começa a passar por cima de direitos individuais, como a privacidade.

Assim como no caso do Napster, os resultados são muito mais negativos para a Industria de intermediação cultural do que os benefícios diretos de uma ação como esta, mesmo que os valores extorsivos e utópicos cobrados nestas ações fossem exequiveis, ainda sim, a balança penderia contra ela. Na verdade a intenção dos representantes da industria de intermediação cultural não é ressarcir-se do pseudo e majorado prejuizo, e sim a prática secular da execução em praça pública:

Execução em praça pública
Execução em praça pública

O objetivo de FOUCAULT, em Vigiar e Punir[bb], é descrever a história do poder de punir como história da prisão, cuja instituição muda o estilo penal, do suplício do corpo da época medieval para a utilização do tempo no arquipélago carcerário do capitalismo moderno. Assim, demonstrando a natureza política do poder de punir, o suplício do corpo do estilo medieval(roda, fogueira etc.) é um ritual público de dominação pelo terror: o objeto da pena criminal é o corpo do condenado, mas o objetivo da pena criminal é a massa do povo, convocado para testemunhar a vitória do soberano sobre o criminoso, o rebelde que ousou desafiar o poder. O processo medieval é inquisitorial e secreto: uma sucessão de interrogatórios dirigidos para a confissão, sob juramento ou sob tortura, em completa ignorância da acusação e das provas; mas a execução penal é pública, porque o sofrimento do condenado, mensurado para reproduzir a atrocidade do crime, é um ritual político de controle social pelo medo.
Juarez Cirino dos Santos (PDF)

É uma prática repressiva comumente utilizada pela Indústria de intermediação cultural, os “alvos” são criteriosamente escolhidos levando-se em conta o impacto e o potencial de marketing, dentro  desta estratégia a escolha do The Pirate Bay foi perfeita.

Entretanto esta prática tem surtido cada dia menos efeito, questões como ética e honestidade vem sendo colocadas em xeque por quem deveria dar o exemplo, e como já previa o Manifesto Cluetrain, as pessoas juntas estão ficando mais sabidas que as corporações, e consequentemente menos sujeitas às suas manipulações. As corporações já parecem saber disto, mas como os duendes de Quem mexeu no meu queijo[bb], tentam sobreviver no seu super ultra lucrativo modelo de negócios, que há muito faz água, na esperança de que um dia tudo voltará a ser como antes, nem que eles tenham de dar uma “ajudazinha”.

Curioso mesmo é o tamanho do poder que a Indústria de intermediação cultural possui, poder este que pretende ser ampliado pelo secretissimo ACTA. Mesmo levando-se em conta que quanto maior o mito midiático, maior a subserviência da sociedade e consequentemente maior o poder em combate-lo, ainda assim acho o poder da Industria de intermediação cultural desproporcional.

Na verdade existe um tremendo discurso hipócrita que começa no conceito de direito autoral, enquanto a manipulada sociedade acredita que o pobre músico passará fome se suas músicas forem pirateadas na Internet, o que ocorre é que há muito o pobre músico cedera seus direitos à gravadora. E dependendo do quanto “leonino” é este contrato, o músico deixa de ter qualquer autoridade sobre a sua obra intelectual. Pergunto ai quem é o maior vilão da história?

Na verdade a Industria de Intermediação cultural quer, além dos lucros imorais, é evitar que a sociedade se dê conta de que ela se tornara obsoleta, ou pior, quer na verdade eliminar o seu principal concorrente: Nós mesmos.

Publiquei este artigo também no Xô Censura e no Trezentos